terça-feira, 13 de abril de 2010

Bento XVI na Terra Santa

A viagem de Bento XVI à Terra Santa: a retomada dialogal com o islã

 

Faustino Teixeira

PPCIR- UFJF/Iser-Assessoria

 

Introdução

 

O processo de abertura dialogal com o islã já faz história no âmbito oficial do catolicismo. Os primeiros passos desse desenvolvimento dialogal remontam ao Concílio Vaticano II, com a Declaração “Nostra Aetate”, sobre as relações da igreja com as religiões não-cristãs (n.3) e também com a Constituição Dogmática “Lumen Gentium”, onde no número 16, faz-se menção à crença comum no Deus único e misericordioso. No âmbito dos documentos papais, temos a herança pioneira da carta do papa Gregorio VII ao Sultão Al-Nasir, de 1076, onde exalta a caridade recíproca entre as duas tradições, fundada na experiência comum de conhecimento e crença no Deus Uno[1]. Na trilha aberta pelo Vaticano II, os papas Paulo VI e João Paulo II confirmam essa dinâmica dialogal, com espírito de abertura e disponibilidade para um trabalho comum em favor da paz. Vale mencionar o singular discurso de João Paulo II aos jovens muçulmanos do Marrocos, em agosto de 1985 (Casablanca). O papa pontua a estima da igreja católica pela qualidade do caminho religioso trilhado pelos muçulmanos e pela riqueza de sua tradição espiritual; sinaliza os valores religiosos em comum, o necessário respeito às diferenças,  e indica a necessária mudança de perspectiva em favor de um trabalho comum no caminho de Deus. Com a entrada de Bento XVI em cena, ocorreram algumas mudanças na relação com o islã, que provocaram tensões entre o mundo muçulmano e a igreja católica. Verifica-se, entretanto, sinais de uma nova abertura, que podem ser destacadas nos últimos anos, e que a viagem à Terra Santa constitui uma expressão concreta. É o que esse artigo busca analisar.

 

1. Desencontros no início do caminho

 

No início do pontificado de Bento XVI houve um certo refluxo no diálogo do catolicismo com o islã. Isso se deve, em parte, à perspectiva de afirmação da identidade católica que vem marcando esse pontificado, com as dificuldades ou resistências de lidar com a temática do diálogo inter-religioso, acrescidas com o temor do relativismo que marca a atmosfera da recente conjuntura católica internacional. No que tange ao islã, houve uma certa preocupação, no início, de deslocar a questão do diálogo entre religiões para o diálogo entre culturas e civilizações. A saída de Michael Fitzgerald do cargo de Presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso (PCDI), em fevereiro de 2006, sinalizava um distanciamento do pontificado com respeito ao “espírito de Assis”, de que Fitzgerald era um dos mais entusiastas. Como indicava o vaticanista Marco Politi, em artigo de março de 2006, em periódico italiano (La Repubblica), Fitzgerald era “homem de ponta nas relações com os lideres religiosos muçulmanos”, e sua destituição lançava uma interrogação sobre a estratégia geopolítica do papa Ratzinger[2]. Com essa mudança, o PCDI ficou submetido ao Conselho para a Cultura, guiado pelo cardeal Paul Poupard.

 

Em setembro de 2006 ocorre o conturbado discurso de Bento XVI na Universidade de Regensburg, num momento extremamente delicado da conjuntura internacional: cinco anos depois dos acontecimentos de 11 de setembro. As palavras do papa provocaram grande contestação no mundo muçulmano, criando um clima difícil para a viagem do papa à Turquia, realizada em novembro de 2006. A respeito do islã, Bento XVI já tinha se pronunciado em livro publicado 2005, Fé, verdade e tolerância: o cristianismo e as grandes religiões do mundo. Nessa obra, o papa dizia que o islamismo podia ser vivido e entendido diversificadamente, seja em formas destrutivas ou de maior aproximação com o cristianismo, e advertia que apesar de sua grandeza, essa tradição religiosa podia apresentar-se em “constante perigo de perder seu equilíbrio, de abrir espaço à violência” e deixar-se desviar “para o que é apenas exterior e ritualista”[3]. Essa mesma preocupação vem retomada no discurso de Regensburg, quando então o papa levanta a bandeira da razão contra o risco do envolvimento da religião na violência.

 

2. Uma mudança de perspectiva

 

Depois da viagem do papa à Turquia, e sob o incentivo do pragmatismo do secretário de Estado do Vaticano, cardeal Tarcisio Bertone, o PCDI volta a ganhar sua autonomia, e para o cargo de presidente vem escolhido o cardeal Jean-Louis Tauran, em junho de 2007, acompanhado pelo monsenhor Khaled Akashed, agora responsável pela direção da Comissão para as Relações Religiosas com os Muçulmanos. Segundo o vaticanista John L. Allen Jr., o papa “optou por um diplomata profissional em vez de um teólogo – a idéia era de que ele queria reorientar o intercâmbio inter-religioso da teologia especulativa em direção a questões mais concretas de co-existência e cooperação”[4].

 

A visita do papa Bento XVI na Terra Santa, em maio de 2009, ocorre numa nova conjuntura. As relações com o islã tinham sido reaquecidas por alguns gestos de aproximação. Há que lembrar o positivo efeito da célebre carta dos 138 muçulmanos enviada às lideranças das igrejas cristãs. A carta chegou ao Vaticano em outubro de 2007, e trazia a assinatura do príncipe da Jordânia e expoentes de 43 países, sunitas e xiitas[5]. Retomava-se o conteúdo de outra carta aberta, enviada por 38 lideranças muçulmanas, em outubro de 2006[6], um mês após a conferência de Bento XVI em Regensburg. Na carta de 2007 se dizia: “Conjuntamente, muçulmanos e cristãos formam bem mais da metade da população mundial. Sem paz e justiça entre estas duas comunidades religiosas não pode existir uma paz significativa no mundo (...). A base para esta paz e compreensão já existe. Faz parte dos princípios verdadeiramente fundamentais de ambas as crenças: o amor ao único Deus e o amor ao próximo”. Em resposta à carta dos 138 muçulmanos, pronunciou-se o cardeal Jean-Louis Taurant, em 12 de outubro na rádio vaticana: “Trata-se de um documento muito interessante e novo, já que provém tanto de muçulmanos sunitas como de muçulmanos xiitas (...). Representa um sinal muito encorajador, já que demonstra que a boa vontade e o diálogo são capazes de vencer os preconceitos. É uma aproximação espiritual ao diálogo inter-religioso, que chamarei de diálogo das espiritualidades”.

 

Essa disposição dialogal do islã, com respeito ao cristianismo, estava presente na famosa mensagem interconfessional de Amã, lançada pelo rei da Jordânia, Abdullah II, em 2005[7]. Ela tinha por objetivo diminuir as tensões entre muçulmanos, cristãos e judeus, com base na consciência comum da ancestralidade de Abraão. Na mensagem se fazia menção, igualmente, ao duplo mandamento que fundamenta a unidade das três tradições religiosas: a fé num só Deus e o amor ao próximo. E afirmava-se como essencial para a paz no mundo, o exercício do respeito mútuo entre estas três grandes religiões monoteístas.

 

Acolhendo o convite presente na carta dos 138 líderes muçulmanos, o cardeal Jean-Louis Tauran organiza em Roma um Fórum Católico-Muçulmano, realizado na Pontifícia Universidade Gregoriana, em novembro de 2008, com expoentes da intelectualidade católica e muçulmana. Como tema do Fórum abordou-se a questão do amor a Deus e amor ao próximo: a dignidade da pessoa humana e o respeito mútuo. Entre alguns pontos da declaração conclusiva firmou-se: “Declaramos que católicos e muçulmanos são chamados a serem instrumentos de amor e de harmonia entre os crentes e por toda a humanidade, renunciando a qualquer opressão, violência e atos terroristas, em particular àqueles realizados em nome da religião e a sustentar o princípio de justiça para todos”. Na conclusão do Fórum, o papa Bento XVI acolheu os participantes e falou ao grupo, sinalizando estar consciente das distintas abordagens sobre Deus que animam cristãos e muçulmanos, mas enfatizou a importância de um respeito recíproco entre as duas tradições e o desafio da solidariedade dessa “família que Deus amou e congregou a partir da criação do mundo até o fim da história humana”. E ao concluir, fez uma última exortação: “Unamos os nossos esforços animados de boa vontade, a fim de superarmos todos os mal entendidos e desacordos. Decidamo-nos a ultrapassar os preconceitos do passado e a corrigir as imagens muitas vezes deturpadas do nosso próximo, que até nos dias de hoje pode criar dificuldades nos nossos relacionamentos”[8].

 

 

 

3. Os passos da viagem à Terra Santa

 

Em razão de todas as complexas questões envolvendo o recente relacionamento entre a igreja católica e o islã, a viagem de Bento XVI à Terra Santa foi preparada com extrema atenção e zelo. Como sublinhou Marco Politi, “Joseph Ratzinger preparou-se cuidadosamente para essa difícil viagem à Jordânia, em Israel e nos territórios palestinos (...). Parece evidente a tentativa de controlar toda expressão singular, de não deixar escapar uma palavra a mais”[9]. Cada palavra, gesto e atitude eram cuidadosamente pensados, para não ferir suscetibilidades. Apesar disso, a dinâmica concreta de sua viagem facultou perspectivas que romperam a polidez política prevista, envolvendo posicionamentos que foram surpreendentes e inusitados.

 

Na mesma linha da viagem de João Paulo II à Terra Santa, em 2000, Bento XVI sinaliza sua experiência como uma peregrinação interior. Antes da partida, durante a cerimônia do Ângelus, em Roma, no dia 03 de maio, fala que vai à Terra Santa como um “peregrino da paz”, sublinhando ainda a importância ecumênica e inter-religiosa de sua viagem. Um símbolo significativo já acontece nesse momento, quando recebe de uma jovem a kefiah, o lenço palestino[10]. A afirmação de sua missão peregrina vem retomada no voo de ida e em sua chegada no aeroporto internacional Queen Alia de Amã, na Jordânia, no dia 08 de maio. Ali começava sua peregrinação, e num lugar de simbolismo expressivo para o diálogo do cristianismo com o islã. De acordo com a análise do perito John L. Allen Jr., publicada no National Catholic Reporter (15/05/2009), Bento XVI “marcou pontos ao colocar as relações católico-muçulmanas de volta nos trilhos, especialmente na Jordânia”[11].

 

Deve-se lembrar que da Jordânia vieram importantes gestos para esse diálogo, como a Mensagem de Amã (novembro de 2004) e a Mensagem Interconfessional de Amã (novembro de 2005), bem como a elaboração da carta dos 138 sábios muçulmanos. A relação do cristianismo com o islã, ocupou os três primeiros dias de viagem de Bento XVI, na Jordânia. Foi o papa que permaneceu por mais tempo neste reino muçulmano. Em resposta à acolhida feita pelo rei Abdullah II, Bento XVI fala de seu “profundo respeito pela comunidade muçulmana”, das dignas iniciativas levadas a efeito pelo reino da Jordânia em favor da paz no Oriente Médio e da liderança no encorajamento do diálogo inter-religioso. Fala também da grande esperança que acompanha sua viagem, na linha de um incremento nas relações  entre cristãos e muçulmanos, e crescimento de um amor ao Deus Todo-Poderoso e Misericordioso, acompanhado pelo amor fraterno de uns pelos outros.

 

Em celebração realizada para cerca de 25 mil fiéis, reunidos no estádio internacional de Amã, no dia 10 de maio, o papa exorta os cristãos ao testemunho e à “coragem da convicção”, que incide no compromisso do diálogo e solidariedade com os pobres e as vítimas das tragédias humanas. Fala da “coragem de construir novas pontes para tornar possível um encontro fecundo de pessoas de diversas religiões e culturas e assim enriquecer o tecido da sociedade”.

 

Em duas etapas de sua estadia na Jordânia, na Universidade de Madaba e na mesquita de al-Hussein, foram colocadas questões importantes para o diálogo entre cristianismo e islã. Há que recordar que os cristãos são franca minoria na Jordânia: menos de 3% dos 5,8 milhões de jordanianos. Durante a bênção da pedra inaugural da Universidade de Madaba, no dia 09 de maio, o papa fala da universidade como um “lugar de compreensão e de diálogo”, de abertura para uma “educação mais ampla”. Ao recordar sua viagem, na Audiência Geral de 20 de maio, em Roma, fala de sua alegria ao benzer a primeira pedra desta Universidade, que traduz o oferecimento de um “espaço aberto e qualificado a todos os que desejam comprometer-se nesta busca, premissa indispensável a um verdadeiro e frutuoso diálogo entre as civilizações”. Em sua visita à mesquita al-Husseim, em 09 de maio, identifica-a como uma “jóia”, onde mulheres e homens encontram-se atraídos  para “rezar e para admitir a presença do Todo-Poderoso, assim como para reconhecer que todos nós somos suas criaturas”. Percorre a mesquita acompanhado pelo príncipe Ghazi bin Talal, outro grande defensor do diálogo islamo-cristão e inspirador da carta dos 138 líderes muçulmanos. Era a sua segunda visita a uma mesquita. Em seu discurso, o príncipe agradece ao papa pelos esclarecimentos dados sobre o infeliz episódio de Regensburg e manda uma mensagem precisa: não é bom ofender o nome do profeta Mohammad, cuja imagem é bem diferente daquelas apresentadas distorcidamente no Ocidente. Em sua resposta, o papa assinala que o tempo não é mais para incompreensões, mas para o exercício da adoração a Deus e de uma vida em “conformidade com as disposições do Onipotente” no testemunho comum em favor do que é justo e bom. Em passagem de seu discurso que lembra os ditos de Regensburg, o papa fala sobre a importância da razão humana, criadora, que é vista como um “dom de Deus”, mas que deve ser “iluminada pela luz da verdade de Deus”. Relembrando esta visita na cerimônia de despedida, no aeroporto de Amã, o papa sinaliza que foi “um dia particularmente luminoso” para ele.

 

No dia 11 de maio começa uma nova etapa na viagem de Bento XVI, quando chega ao aeroporto Ben Gurion, de Tel Aviv. Era o início da peregrinação a Israel. Alguns analistas assinalaram que começava aqui a “parte mais difícil da viagem”. Conforme Marco Politi, “do ponto de vista geopolítico, tudo está em jogo sobre uma só palavra: se o pontífice será o advogado ou não de um Estado palestino”[12]. E ao papa não faltou essa coragem, que será melhor explicitada ao se encontrar com os palestinos em Belém. Em sua chegada, foram claras as suas palavras contra o anti-semitismo e de respeito pelos seis milhões de vítimas do holocausto. Fala também da necessária busca de uma solução de paz para judeus e palestinos, “de forma que ambos os povos possam viver em paz numa pátria que seja sua, dentro de confins seguros e internacionalmente reconhecidos”. Junto ao memorial de Yad Vashem manifesta a solidariedade e compaixão da igreja por todos aqueles que foram vitimas da perseguição nazista, sendo o seu gesto mais forte o silêncio que capta o brado dos que derramaram o seu sangue inocentemente. Sinaliza em sua Audiência Geral, de 20 de maio, em Roma, que sua presença mo memorial foi de intenso recolhimento: “Detive-me ali em silêncio, rezando e meditando sobre o mistério do ´nome`: cada pessoa humana é sagrada, e o seu nome está inscrito no coração do Deus eterno. Nunca deve ser esquecida a tremenda tragédia da Shoah! Ao contrário, é preciso que esteja sempre na nossa memória como admoestação universal ao respeito da vida humana, que assume um valor infinito”. O papa fez também uma visita ao Muro Ocidental de Jerusalém, onde deixou uma mensagem de paz: “Enviai a vossa paz sobre esta Terra Santa, sobre o Médio Oriente e sobre toda a família humana”.

 

No mesmo dia, no auditório de Notre Dame (Jerusalém), participa de um encontro com organizações voltadas para o diálogo inter-religioso. Suas palavra em favor do diálogo são claras: “Vemos a possibilidade de uma unidade que não depende da uniformidade. Enquanto as diferenças que analisamos no diálogo inter-religioso podem, por vezes, parecer barreiras, todavia elas não exigem o ofuscamento do sentido comum de temor reverencial e de respeito pelo universal, pelo absoluto e pela verdade que impele as pessoas religiosas, antes de tudo, a estabelecer relacionamentos umas com as outras”. No dia seguinte, durante a recitação do Regina Caelis com os ordinários da Terra Santa, no Cenáculo de Jerusalém, fala sobre o “renovado impulso espiritual para a comunhão na diversidade” e a “nova consciência ecumênica” que vem envolvendo a igreja católica desde o Concílio Vaticano II, e que constituem um marco característico do tempo atual.

 

Ainda em Jerusalém, faz uma visita de cortesia ao Grão Mufti, Mohammad Ahmad Hussein, na Cúpula da Rocha (Esplanada das Mesquitas), um dos três mais importantes locais de culto dos muçulmanos. Esse espaço sagrado serve de motivo para o papa recordar a “ecumene abraâmica”, lembrada também em outras ocasiões dessa mesma viagem. Na visão do papa, a Cúpula da Rocha suscita uma reflexão sobre a fé de Abraão: ali “os caminhos das três grandes religiões monoteístas mundiais encontram-se, recordando-nos o que elas tem em comum. Cada uma crê num só Deus,  criador e regulador de tudo. Cada uma reconhece Abraão como próprio antepassado , um homem de fé ao qual Deus concedeu uma bênção especial. Cada uma reuniu multidões de fiéis no decorrer dos séculos e inspirou um rico patrimônio espiritual, intelectual e cultural”. Com base na compreensão do Deus como “infinita fonte de justiça e misericórdia”, o papa sublinha a importância desse lugar sagrado como estímulo e desafio essencial “para os homens e mulheres de boa vontade empenharem-se a fim de superar incompreensões e conflitos do passado e colocarem-se no caminho de um diálogo sincero finalizado à construção de um mundo de justiça e de paz para as gerações vindouras”.

 

Na sua passagem por Belém, na Cisjordânia, em território palestino, a veia critica de Bento XVI manifestou-se de forma bem clara, sinalizando uma presença espiritual com incidência profética. Na visão do vaticanista John L. Allen Jr., foi “o dia mais claramente político de sua viagem”[13]. Na praça do Palácio Presidencial, junto ao presidente palestino, Mahmud Abbas, defende corajosamente o direito a uma “Palestina soberana (...) dentro de confins internacionalmente reconhecidos”. Sublinha, com vigor, que “os palestinos, assim como todas as pessoas, tem o direito natural a casar, a formar uma família e a ter acesso ao trabalho, à educação e à assistência médica”.

 

Em visita ao campo de refugiados de Aida, em Belém, presta sua solidariedade aos palestinos desabrigados. Aqui, novamente, uma veia profética se manifesta. Fala sobre suas legítimas aspirações a um “Estado palestino independente” e ataca os muros que são erigidos para separar os povos. São palavras fundamentais que fazem ecoar para o mundo a precária situação desses repulsivos campos onde estão enclausurados os refugiados palestinos, tão bem descritos por Marco Lucchesi: “Mundo esquálido e sombrio. Horizonte sem horizonte. Tristeza difusa e sem lágrimas. Holocausto dos vivos, se a vida que levam pode se chamar vida”[14]. Na cerimônia de despedida de Belém, em discurso no pátio do palácio presidencial, nesse mesmo dia, volta a falar do muro que circunda o campo de refugiados de Aida, “separando os vizinhos e dividindo as famílias”. Mas adverte que se esses muros podem ser construídos com facilidade, é certo que eles “não duram para sempre. Eles podem ser derrubados”. Em discurso na cerimônia de despedida, no aeroporto de Tel Aviv, assinala que uma das “visões mais tristes” de sua viagem foi a do muro, que os palestinos chamam de “muro do apartheid”.

 

Ainda no discurso de despedida, agradece a hospitalidade recebida, mas faz um apelo incisivo: “Basta ao derramamento de sangue! Basta aos confrontos! Basta ao terrorismo! Basta à guerra! Interrompamos o círculo vicioso da violência. Que se possa instaurar uma paz estável baseada na justiça, haja verdadeira reconciliação e restabelecimento”.

 

Aos jornalistas que o acompanharam no voo de regresso a Roma, no dia 15 de maio, sublinha suas três impressões fundamentais da viagem: a disponibilidade ao diálogo inter-religioso, o encorajador clima ecumênico e o desejo de paz por toda parte. Isto também foi lembrado na Audiência Geral, realizada em Roma, no dia 20 de maio, quando voltou a falar dois mandamentos fundamentais, que constituem a base para qualquer diálogo entre crentes: o amor a Deus e o amor ao próximo.

 

Conclusão

 

A questão do islã vem ocupando a atenção do Ocidente nos últimos anos, e nem sempre de forma favorável. Os acontecimentos que se seguiram ao dramático episódio da derrubada das Torres Gêmeas, em setembro de 2001 foram bem problemáticos a esse respeito, alimentando o perigoso espectro do “choque de civilizações”, defendido por intelectuais americanos e implementado pela política norte-americana de George Busch. Mas mudanças substantivas começam a acontecer em âmbito mundial, e o recente discurso de Barak Obama no Cairo, no dia 04 de junho de 2009, sinaliza uma tentativa de por fim ao “ciclo de desconfiança e discórdia”, e a busca de um “novo começo” de relacionamento, pautado agora no respeito e na acolhida do outro. Em seu discurso, Obama sublinhou: “É preciso que haja um esforço sustentado para ouvirmos uns aos outros; aprendermos uns com os outros; respeitarmos uns aos outros, é buscar terreno comum”[15]. É curiosa a coincidência de perspectivas que marcam a viagem do papa Bento XVI à Terra Santa e o histórico discurso de Barak Obama. Há um mote que é comum, e diz respeito à acolhida, ao reconhecimento do outro e à abertura dialogal.

 

Para os que vêm acompanhando a conjuntura eclesiástica internacional, nesses últimos 40 anos, há que assinalar um traço de positividade nesta viagem de Bento XVI à Terra Santa, sobretudo tendo em vista o complexo tema das relações entre o cristianismo e o islã. Depois dos desencontros em torno do discurso em Regensburg, essa viagem do papa reequilibra as relações que estavam embaçadas. E isto também se deve à generosidade dialogal das autoridades religiosas jordanianas, que tiveram um singular papel nesta convocação, pontuando os laços fraternos entre muçulmanos e cristãos e chamando a atenção para os dois fundamentais mandamentos em comum: do amor a Deus e ao próximo. Contrariando as teses em voga sobre o “conflito de civilizações”, o papa sublinha o desafio que é mais fundamental, de uma “aliança de civilizações” com o islã. Vale destacar certos momentos da viagem, de simbolismo particular, como a visita ao Domo da Rocha, em Jerusalém, onde em sinal de respeito o papa retira os sapatos fala sobre o essencial desafio de uma “ecumene abraâmica”. Em sua passagem pela Cisjordânia, situam-se os gestos proféticos mais substantivos da viagem: a defesa do Estado palestino, a afirmação da cidadania negada aos refugiados e a denúncia contundente contra o “muro do apartheid”  no campo  de Aida. Essas são as imagens mais impressionantes que ficam da viagem do papa na Terra Santa. Quem sabe tudo isso não seja o sinal alvissareiro de novos tempos para uma presença pública distinta da igreja na sociedade e de abertura autêntica para o diálogo inter-religioso. Só o futuro dirá.

 

(Publicado na Revista REB, v. 69, n. 276, outubro 2009, pp. 945-953)



[1] CONSEIL Pontifical pour le dialogue interreligieux. Reconnaître les liens spirituels qui nous unissent. 16 ans de dialogue islamo-chrétien. Cite du Vatican, 1994, p. 4.

[2] Marco POLITI. O papa e o islã. Reproduzido no IHU Online, de 08/03/2006:

http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=5495 (acesso em 04/06/2009)

[3] Joseph RATZINGER. Fé, verdade, tolerância. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2007, pp. 52 e 185.

[4] Ver a respeito, a matéria publicada no IHU Online: http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=18583 (acesso em 04/06/2009)

[5] Ver o texto integral da carta, em versão francesa:

http://www.acommonword.com/lib/downloads/CW-Total-Final-French.pdf (acesso em 04/06/2009)

[6] Ver a respeito:

http://www.ammanmessage.com/media/openLetter/english.pdf (acesso em 04/06/2009)

[7] Ver o texto integral, em versão francesa:

http://www.ammanmessage.com/media/french.pdf (acesso em 04/06/2009)

[8] Para o discurso do papa, ver:

http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/november/documents/hf_ben-xvi_spe_20081106_cath-islamic-leaders_po.html (acesso em 04/06/2009). Todos os outros discursos,  audiências, homilias, orações e demais falas do papa citados nesse artigo foram tiradas do portal oficial do Vaticano: http://www.vatican.va

[9] Marco POLITI. Ratzinger prega uma “aliança de civilizações” com o islã. In:

http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=22129 (acesso em 04/06/2009)

[10] E receberá também outra Kefiah branca, dada por dois escoteiros, durante sua visita ao centro  de reabilitação para deficientes Regina Pacis, na cidade de Amã.

[11] John . ALLEN Jr. Três grandes ironias da viagem do papa à Terra Santa. In:

http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=22442 (acesso em 04/06/2009)

[12] Marco POLITI. “Fiquem no Oriente Médio”. Ratzinger exalta o papel dos cristãos no diálogo inter-religioso. In:

http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=22174

[13] John . ALLEN Jr. Três grandes ironias..., in:

http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=22442 (acesso em 04/06/2009)

[14] Marco LUCCHESI. Os olhos do deserto. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 93

[15] Esse discurso foi publicado no Jornal Folha de São Paulo, em sua edição de 05 de junho de 2009. Para acessar o conteúdo do discurso cf.

http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u576604.shtml (acesso em 05/06/2009)

 

 

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