terça-feira, 20 de abril de 2010

Evangelização em um mundo pluralista

EVANGELIZAÇÃO EM UM MUNDO PLURALISTA

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

 

Introdução 

 

Faz parte fundamental da identidade católico-romana a tarefa evangelizadora. Em sua exortação apostólica sobre a evangelização no mundo contemporâneo, Evangelii nuntiandi, Paulo VI indica que “a tarefa de evangelizar todos os homens constitui a missão essencial da Igreja”[1]. Como conjugar  este desafio da evangelização com a crescente situação de pluralismo religioso  que constitui um marco decisivo deste novo milênio que se inicia? A realidade da globalização  e a presença da pluralização religiosa  apresentam-se hoje como traços instaurados e permanentes, que não podem sob hipótese alguma ser descartados ou considerados  contingenciais.  Não há como manter uma visão tradicional de evangelização  deslocada do novo desafio que acompanha a percepção do pluralismo religioso não apenas como um dado de fato, mas como uma realidade de princípio. A tarefa evangelizadora não se situa mais num quadro referencial marcado pela força homogeneizadora de uma tradição hegemônica, mas no horizonte multifacetado de uma presença religiosa diversificada.  Há também o desafio crescente de assumir a perspectiva evangelizadora mantendo aceso o “espírito do diálogo”, o respeito essencial à liberdade religiosa e a chama da compaixão. A verdadeira missão evangelizadora deve estar sempre animada e penetrada pelo diálogo e pela responsabilidade global; pela “atitude de respeito e de amizade” pelo outro, pelo diferente, que traz consigo  um mistério irredutível e imponderável,  mas também pela responsabilidade em favor do bem estar eco-humano.

 

 

 

 

1.    Globalização e Pluralismo Religioso

 

Vivemos tempos de globalização intensificadora, de afirmação de uma consciência mais planetária, de aproximação de culturas e religiões.  Esta globalização não constitui unicamente um fenômeno econômico, mas traduz igualmente uma transformação do contexto comunitário e pessoal da experiência social.  As atividades cotidianas passam a ser influenciadas por eventos que ocorrem nos lugares mais distantes. Não há como negar o impacto exercido por tal fenômeno nas identidades culturais e religiosas.  As identidades são “discursivamente forçadas a uma exposição”, provocadas à interrogação e ao discurso.[2] A globalização aproxima identidades que são distintas: as diferenças tornam-se mais localizadas e visíveis , diretamente encontradas. Isto não significa, necessariamente, a instauração de uma dinâmica dialogal. Em realidade, a aproximação não proposital de identidades distintas leva muitas vezes à suspeita, ao temor e ao conflito.[3] A presença “ameaçadora” do outro provoca, em casos concretos, o temor do desenraizamento e da perda da identidade. O atual crescimento dos fundamentalismos ou neofundamentalismos é uma expressão viva deste temor.

 

A afirmação da modernidade veio acompanhada de um aumento quantitativo e qualitativo da pluralização, entendida também como pluralização física e demográfica. Verifica-se paupavelmente um crescimento populacional, uma maior aproximação involuntária das pessoas, uma exposição pelos meios de comunicação de massa de diferentes e contraditórios modos de pensar e viver etc. O sociólogo Peter Berger tem abordado extensivamente esta questão e levantado indagações bem pertinentes para a reflexão. Em sua visão,

 

“o pluralismo cria uma condição de incerteza  permanente com respeito ao que se deveria crer e ao modo como se deveria viver;  mas a mente humana abomina a incerteza,  sobretudo no que diz respeito ao que verdadeiramente  conta na vida. Quando o relativismo  alcança uma certa intensidade, o absolutismo volta a exercer  um grande fascínio”[4].

 

O temor provocado pelo pluralismo, sobretudo suas possíveis consequências no campo da  afirmação do sentido, tem suscitado a criação diversificada de mecanismos de defesa institucional voltados a impor limites  à interação e comunicação das identidades distintas. Para driblar o risco da desorientação e dispersão identitária, erguem-se, por todo canto, “muros” de defesa voltados para a afirmação rigorosa das convicções tradicionais e a manutenção da auto-evidência de sua plausibilidade.[5]  Entende-se claramente a razão que move hoje em dia inúmeros grupos que buscam normas de navegação, marcos referenciais mais seguros para a sua vida, quando não rígidos e cristalizados.  Verifica-se igualmente tal tendência em muitas instituições religiosas  ou núcleos a elas relacionados. Na base desta busca de parâmetros mais seguros ou firmes encontra-se o receio da relativização que pode acompanhar a dinâmica de afirmação do pluralismo.  Ao desacreditar os conhecimentos auto-evidentes e as interpretações tidas como únicas em validade, o pluralismo moderno vem responsabilizado  pelas crises subjetivas e intersubjetivas.  Ergue-se uma crítica contundente ao pluralismo moderno, responsabilizado  pela desestabilização  das “auto-evidências das ordens de sentido e de valor que orientam as ações e sustentam a identidade”[6].

Os que defendem o diálogo inter-religioso  insistem na idéia de que o pluralismo  moderno, e em particular o pluralismo religioso, constitui hoje  um desafio insuperável [7], trazendo consigo uma exigência de transformação dos parâmetros de orientação da vida e de percepção da identidade. O pluralismo vem acolhido como um valor inevitável e não fonte de insegurança. O diálogo inter-religioso busca ser uma alternativa possível ao risco representado pela realidade tensa da imediatez das distinções religiosas, que podem provocar a afirmação de “identidades mortíferas”. Trata-se de uma forma emergente de regulação ou “gerenciamento convivial das identidades coletivas”.[8] O diálogo inter-religioso aposta na possibilidade de uma afirmação plural das identidades, abertas e disponibilizadas  ao aprendizado da alteridade.

 

O pluralismo religioso traduz a presença real e desafiadora de identidades religiosas  complexas e distintas, pontuadas pela consciência viva de sua singularidade e pela força de suas convicções. Marca uma perspectiva de mudança com respeito a um momento anterior caracterizado por uma maior homogeneidade de pertencimento. Como  fenômeno tipicamente moderno, as religiões passam a reivindicar maior autonomia e legitimidade  específicas.  Com o pluralismo religioso  afirma-se igualmente a reivindicação crescente em favor da liberdade religiosa  e a oposição a quaisquer tentativas de proselitismo ou coerção no campo religioso.

 

2. Pluralismo  religioso  e evangelização

 

O momento atual de pluralismo religioso exige, assim, uma nova aproximação e abordagem da questão da evangelização. Não há como continuar afirmando teses tradicionais que indicavam o cristianismo como ponto de encontro das várias tradições religiosas. Há uma certa ingenuidade em acreditar, como João Paulo II,  que “o ano 2000 convida a encontrarmo-nos, com renovada fidelidade e mais profunda comunhão, sobre as margens deste grande rio da Revelação, do Cristianismo e da Igreja (...)”.[9] O pluralismo religioso  não constitui uma realidade provisória, mas um traço historicamente duradouro e insuperável. Sob o ponto de vista teológico, é necessário um passo adiante na reflexão sobre o tema, superando as interpretações que identificam o pluralismo religioso como expressão provisória e contingente, ou mesmo reflexo da cegueira culpável dos seres humanos em sua incapacidade de perceberem a verdadeira religião. A teologia vem convocada a reconhecer neste pluralismo uma expressão das “riquezas da sabedoria infinita e multiforme de Deus”.[10] Daí se falar hoje em dia de um pluralismo religioso de princípio, que revela a dinâmica de uma acolhida positiva da diversidade religiosa como um valor singular. As religiões não são apenas genuinamente diferentes, mas também autenticamente preciosas. Há que honrar esta alteridade em sua especificidade peculiar. E honrar a alteridade é ser capaz de reconhecer algo de irredutível e irrevogável nas outras tradições religiosas.

 

Verifica-se hoje também no campo da reflexão ecumênica uma preocupação em resguardar a singularidade da diversidade. Evita-se definir a atividade ecumênica como a anexação das outras igrejas cristãs à igreja católico-romana. A unidade requerida não é em favor de uma igreja única, mas de uma unidade que preserve a diversidade legítima.[11] Não existe um “vazio eclesial” nas experiências eclesiais  não católicas, mas traços de grande valor, que inclusive favorecem a perceção de aspectos do mistério cristão que escapam da percepção católica.[12]

 

O mesmo procedimento de respeito à alteridade presente no campo do ecumenismo vem requerido no tratamento do diálogo inter-religioso. É sugestivo perceber como o processo dialogal entre o cristianismo e o judaísmo revelou-se paradigmático para o “ecumenismo” interreligioso. O papa João Paulo II, em discurso aos representantes da comunidade judaica de Roma, em abril de 1986, assinalou que os judeus são portadores de uma “vocação irrevogável”.[13] Esta afirmação da “perenidade de Israel” e de sua aliança, tem servido de base para a indagação teológica atual sobre a presença de um traço igualmente irredutível e irrevogável misteriosamente presente nas demais tradições religiosas.[14]

 

Neste tempo de pluralismo religioso e de reconhecimento da positividade das diversas tradições religiosas,  a dinâmica evangelizadora ganha um significado peculiar.  Sem perder a percepção da importância da evangelização explícita, que mantém-se viva como prioridade de importância lógica e ideal, reforça-se agora o seu sentido mais lato, de evento global  e não circunscrito à proclamação meramente verbal. Recupera-se a idéia de evangelização como fenômeno “rico, complexo e dinâmico”, enquanto exercício essencial de “tornar nova a própria humanidade” (EN 18). Verifica-se uma estreita vinculação da evangelização com a promoção humana, mas também com o diálogo inter-religioso,  que em casos concretos aparece como única forma de testemunho e serviço.

 

A mensagem cristã deve ser compreendia não como um imperativo categórico para todos, mas sobretudo como oferta de uma singularidade. A missão evangelizadora é essencialmente uma “missão de amor”. Encontra sua razão de ser e sua raiz na experiência do Deus de amor (1Jo 4,8.16), que é uma experiência de “amor fontal”. No encontro com Jesus, os cristãos vivem a radicalidade de uma dinâmica de amor, bem como um exemplo de vida descentrada e dedicada ao serviço: alguém que proclamou o projeto de Deus muito mais com os atos e o diálogo do que com as palavras.  É a partir deste “centro do mistério do amor” que nasce a decisão e o desafio do impulso missionário.  Em sua raiz encontra-se a experiência de um amor profundo por Jesus Cristo, que se traduz pelo desejo de compartilhá-lo com os outros. Antes de ser o resultado de um mandato, a missão evangelizadora é expressão de um mistério do amor que transformou o sujeito [15]:

 

“O que vimos com nossos olhos,

o que contemplamos,

e nossas mãos apalparam

da Palavra da vida

- porque a Vida manifestou-se:

nós vimos e damos testemunho” (1Jo 1-2)

 

A  motivação mais importante da missão é, portanto, a motivação do amor.  A proclamação de Jesus vem traduzida pelo testemunho de Jesus e, sobretudo, pelo seguimento de Jesus. Assim como para Jesus os atos foram de fundamental importância,  também para a igreja o mesmo procedimento vem exigido na tarefa evangelizadora. O desafio que se coloca é o de viver como ele, no meio dos pequenos e excluídos, dos próximos e vizinhos, daqueles que não partilham da mesma  fé ou convicção. A meta e o horizonte da evangelização é o Reino de Deus, que transborda e dá sentido à missão eclesial. Proclamar o Reino é favorecer e promover a boa nova da justiça, da paz, da compaixão, do respeito e fraternidade entre os povos.

 

3. Desafios da evangelização no mundo plural

 

A intensificação da rede de comunicação neste tempo de globalizão  favorece não apenas um melhor conhecimento da diversidade religiosa, como também a consciência da relatividade  histórica das religiões.  Torna-se cada vez mais difícil aceitar sem resistência  a pretenção de determinadas religiões arvorarem-se detentoras da plenitude da verdade. Há que reconhecer com certa perplexidade a permanência de alguns posicionamentos restritivos ainda presentes em certos documentos do magistério eclesiástico católico-romano a propósito da diversidade religiosa, bem como em documentos de comissões teológicas ou de teólogos específicos. Com base na afirmação da unicidade de Jesus Cristo e da necessidade da igreja, restringe-se de forma nítida a singularidade das outras tradições religiosas e sua potencialidade salvífica. O reconhecimento da “plenitude dos meios de salvação” fica reservado à igreja católico-romana, enquanto as outras religiões aparecem objetivamente como instâncias “gravemente deficitárias”, por não conseguirem estabelecer uma “relação autêntica e viva com Deus”.

 

Para exemplificar, podemos mencionar três passagens significativas  a respeito. Na exortação apostólica Evangelii nuntiandi (1975), de Paulo VI, sobre a evangelização no mundo contemporâneo, assinala-se:  “a nossa religião instaura efetivamente uma relação autêntica e viva com Deus, que as outras religiões não conseguem estabelecer, se bem que elas tenham, por assim dizer, os braços estendidos para o céu” (EN 53). Na carta encíclica de João Paulo II sobre a validade permanente do mandato missionário, Redemptoris missio (1990), João Paulo II sinaliza  que “o diálogo  deve ser conduzido e realizado com a convicção de que a Igreja é o caminho normal de salvação e que só ela possui a plenitude dos meios de salvação” (RM 55). Mais recentemente, na declaração Dominus Iesus (2000), da Congregação para a Doutrina da Fé, retoma-se a visão mais tradicional: “Se é verdade que os adeptos das outras religiões podem receber a graça divina, também é verdade que objetivamente se encontram numa situação gravemente deficitária, se comparada com a daqueles que na Igreja têm a plenitude dos meios de salvação” (DI 22). Frases como estas encontram sua razão de ser no contexto da tradicional hermenêutica cristã, para a qual Jesus Cristo constitui o “único mediador” entre Deus e os seres humanos (RM 5). Assim sendo, a missão evangelizadora explícita assume um lugar de destaque, exigindo a proclamação clara do nome e da doutrina de Jesus Cristo, e a afirmação da igreja como necessária para a salvação. A centralidade da igreja católico-romana vem igualmente acentuada no documento da Comissão Teológica Internacional, sobre o cristianismo e as religiões, publicado em 1997.[16] Afirma-se que “somente na Igreja, que está em continuidade histórica com Jesus, pode-se viver plenamente seu mistério. Daí a necessidade iniludível do anúncio de Cristo por parte da Igreja”[17].

 

Num tempo marcado pela dinâmica do pluralismo religioso e pelo desafio imprescindível  do diálogo, determinados documentos emitidos pelo magistério eclesiástico acabam provocando perplexidade ou dúvidas com respeito às reais intenções de abertura anunciadas pela igreja católica.[18] A presença intrigante de uma “dupla linguagem” foi apontada com propriedade pelo teólogo indiano Michael Amaladoss: “Por um lado, o Papa convida os líderes de outras religiões a se reunirem para orar pela paz. Por outro, o Vaticano tacha as outras religiões de objetivamente deficientes”[19]. Não há como manter sustentando na prática missionária  um tipo de linguagem beligerante e agressiva  com respeito às outras religiões, ou mesmo afirmando, ainda que com boa intenção, que as religiões  são destinadas  a encontrar o seu remate no cristianismo  e na igreja.  Não se pode negar o lugar e o valor da convicção e da identidade na dinâmica evangelizadora, mas há que estar atento ao risco de querer impor aos outros a nossa própria convicção, ferindo radicalmente o espírito do diálogo  e a integridade do interlocutor, enquanto portador de um mistério irredutível. Como  lembrou Paul Ricoeur, “há algo de potencialmente intolerante na convicção”[20]. Infelizmente, ao longo dos séculos, Jesus Cristo foi muitas vezes invocado para justificar práticas de intolerância e violência. Há hoje um reconhecimento cada vez mais evidenciado de que uma tal conduta rompe radicalmente com o sentido libertador dos gestos e prática de Jesus[21]. O seguimento de Jesus provoca não a “violência da convicção”, mas a “não violência do testemunho”[22]. Nesta perspectiva, a dinâmica  evangelizadora ganha um novo significado, ou seja, o de anunciar e antecipar na história os valores essenciais do Reino de Deus. A igreja apresenta-se como servidora do Reino de Deus,  que envolve igualmente  os membros de outras tradições religiosas, que dele participam mediante o exercício da fé e do amor[23]. A missão evangelizadora ganha uma compreensão amplificada em sentido mais pluralista: uma missiologia  reinocêntrica. O compromisso em favor do anúncio de Jesus Cristo vem interpretado como “evento global”, não circunscrito apenas à proclamação verbal de um complexo doutrinal, mas envolvendo o exercício de comunicação de uma  pessoa que é mistério que dá vida. Ganha aqui centralidade o estilo de vida de Jesus, o seu ideal, o sentido de sua existência, os valores que marcaram o seu projeto de vida voltado para o Reino de Deus.  É dando testemunho dos valores do Reino com o seu ser e agir que a igreja  traduz fidelidade ao seguimento de Jesus e consegue confirmar sua credibilidade no tempo atual.

 

Um fundamental desafio para o nosso tempo de globalização, apontado por Johan Baptista Metz, relaciona-se à “ecumene da compaixão”[24]. O problema do sofrimento, enquanto realidade dolorosa, crescente e universal, emerge hoje como eixo estruturador e base para um novo entendimento entre as religiões da terra. O impulso de solidariedade e compaixão em favor dos pequenos e de denúncia contra as forças necrófilas da sociedade mundial  torna-se um imperativo para as religiões. Isto significa para as igrejas cristãs em particular o desafio de acionar a memória  ativa e perigosa de Jesus de Nazaré, cujo olhar decisivo recaiu não sobre os pecados dos humanos, mas sobre a dor dos outros, sobretudo dos excluídos. Para Jesus, o pecado mais doloroso relacionava-se ao “refuto da participação na dor dos outros”, ou seja, à incapacidade de comoção das entranhas em favor de uma nova solidariedade.  A dinâmica missionária  e evangelizadora não pode deixar de se contagiar por este fundamental desafio de uma “ecumene da compaixão”.

 

Uma  tal perspectiva missiológica revela-se sintonizada e aberta aos desafios fundamentais do diálogo inter-religioso. A dinâmica reinocêntrica convoca a igreja para o exercício permanente de humildade  e abertura. Rompe-se o círculo do eclesiocentrismo e instaura-se uma nova disposição de escuta e abertura à interlocução da alteridade.  As outras tradições religiosas são reconhecidas como co-participantes da viagem comum e fraterna em direção ao horizonte sempre maior  do Reino como mistério.  O Reino de Deus, enquanto destino misterioso da criação e do humano,  suscita uma sensibilidade nova ao mundo da alteridade. Trata-se de uma abertura que não é fácil, mas que é reveladora de dimensões inusitadas e fundamentais para o crescimento da identidade. A experiência da alteridade provoca “alteração” no sujeito, desinstalando-o de uma segurança aparentemente firme, mas frágil por ser irreal. Não há caminho possível de encontro verdadeiro com a identidade no mundo plural senão pela “desvio” da alteridade. Como assinala Carlos Palácio, “só quando somos capazes de estarmos diante do ´outro` como diante de um mistério irredutível a nós mesmos podemos ter certeza de ´ver` e ´escutar` em verdade e em profundidade”[25].

 

O projeto missionário, quando realmente imbuído  pelo espírito do diálogo, ganha um novo sentido e uma  nova perspectiva. O missionário deixa de ser o exclusivo portador de uma  palavra e depositário de uma verdade que lhe é particular, tornando-se mais humilde e receptivo à dinâmica da alteridade.  A percepção e construção de sua identidade passam agora pela irrigação da interlocução dos outros e de suas verdades. O diálogo aparece, assim, não apenas como uma exigência de promover e respeitar a liberdade do interlocutor (DM 18), mas sobretudo como uma  “exigência de respeito aos caminhos misteriosos de Deus no coração do homem”[26].

 

(Publicado na revista Convergência, v. 41, n. 393, junho 2006, pp. 270-277)



[1] PAULO VI. A evangelização no mundo contemporâneo. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1975, n. 14 (Evangelii nuntiandi).

[2] Anthony GIDDENS. Para além da esquerda e da direita. São Paulo: Unesp,1995, p. 13 e  101.

[3] Clifford GEERTZ. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 158.

[4] Peter BERGER. Una gloria remota. Avere fede nell´epoca del pluralismo. Bologna: Il Mulino, 1994, p. 48.

[5] Peter BERGER & Thomas LUCKMANN. Modernidade, pluralismo e crise de sentido. Petrópolis: Vozes, 2004, pp. 37-74.

[6] Ibidem, p. 73.

[7] Claude GEFFRÉ. Croire et interpréter. Paris: Cerf, 2001, p. 9. Para Geffré, o pluralismo religioso “pode ser considerado como um destino histórico permitido por Deus, cuja significação última nos escapa”: Ibidem, p. 95.

[8] Pierre SANCHIS. A graça e a gratidão. Teoria & Sociedade. Número especial. Belo Horizonte: UFMG, maio de 2003, p. 167; Danièle HERVIEU-LÉGER. Le pèlerin et le converti. Paris: Flammarion, 1999, p. 260.

[9] JOÃO PAULO II. Tertio millennio adveniente. São Paulo: Paulinas, 1994.

[10] SECRETARIADO Para os Não-Cristãos. A Igreja e as outras religiões. São Paulo: Paulinas, 2001, n. 41 (Diálogo e Missão)

[11] Walter KASPERS. L´unica chiesa di Cristo. Il Regno-Attualità, v. 4, 2001, p. 130.

[12] JOÃO PAULO II. Ut unum sint. São Paulo: Paulus, 1995, ns. 13 e 14.

[13] PONTIFICIO Consiglio per il Dialogo Interreligioso. Il dialogo interreligioso nel magistero pontificio. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1994, p. 395.

[14] Claude GEFFRÉ. Croire et interpréter. Paris: Cerf, 2001, p. 143.

[15] PONTIFÍCIO Conselho para o Diálogo Inter-religioso. Diálogo e anúncio. Petrópolis: Vozes, 1991, n. 83.

[16] COMISSÃO Teológica Internacional. O cristianismo e as religiões. São Paulo: Loyola, 1997.

[17] Ibidem, p. 30 (n. 49c).

[18] Michael AMALADOSS. Dificultades del dialogo con las religiones orientales. Iglesia Viva, n. 208, 2001, p. 1-2.

[19] Michael AMALADOSS. Religiões: violência ou diálogo? Perspectiva Teológica, v. 34, n. 93, 2002, p. 189.

[20] Paul RICOUER. Em torno ao político. São Paulo: Loyola, 1995, p. 183 (Leituras 1).

[21] Christian DUQUOC. Du dialogue inter-religieux. Lumière &  Vie, n. 222, 1995, p. 72.

[22] Paul RICOUER. Op.cit., p. 187.

[23] Os teólogos asiáticos reagem com razão a certa pretensão teológica de querer sempre enquadrar os participantes de outras tradições religiosas no “mistério da igreja”. Na realidade, a recepção da graça salvífica não acontece para eles apesar de sua religião, mas nos símbolos e rituais de sua própria tradição: “é através deles que encontram a Deus, e tal encontro não é infecundo”: Michael AMALADOSS. Insieme verso il Regno. Teologia asiatica emergente. In: Rosino GIBELLINI (Ed.). Prospettive teologique per il XXI secolo. Brescia: Queriniana, 2003, p. 156.

[24] Johann Baptist METZ. Proposta di programma universale del cristianesimo nell´età della globalizzazione. In: Rosino GIBELLINI (Ed.). Prospettive teologique... Op.cit., p. 389-402.

[25] Carlos PALÁCIO. Para uma pedagogia do diálogo. Perspectiva Teológica, v. 35, 2003, p. 371-372.

[26] Claude GEFFRÉ. Croire et interpréter. Op.cit., p. 127.

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