terça-feira, 17 de abril de 2018

O humano na malha das relações

O humano na malha das relações

Faustino Teixeira

Duas noções básicas estão presentes no chamado ensinamento de Buda (Buddhadharma) e são fundamentais para entender a teia de conectividade que marca o universo: a originação interdependente (pratîtyasamutpâda) e a dinâmica da impermanência. Por um lado, a percepção de que todas as coisas não podem ser compreendidas de forma separada, mas estão inseridas num jogo relacional; por outro, a compreensão de que nada do que existe ganha um traço de substancialidade estanque ou estatuto de entidade independente. Com base no conceito de anâtman, nenhum ser é dotado de substancialidade ontológica. Disto segue que “o conceito de sûnyatâ(´vacuidade`): na medida em que os seres são interdependentes e complexos, não se pode afirmar a existência deles enquanto entidades autônomas; pelo contrário, é a vacuidade de uma suposta substância que caracterizaria de forma mais apropriada tanto a ´existência` quanto os ´indivíduos`”[1].
Com a percepção viva da originação interdependente somos capazes de perceber os vínculos que estão por toda parte. É também o que captou o mestre Dôgen, da tradição Soto Zen, no século XIII, repercutindo as palavras do 27º patriarca indiano, Han.nyatara: “Quando uma flor eclode o mundo inteiro se levanta”[2]. A abertura das pétalas de uma flor traduzem a abertura de seu coração para a recepção da água, a escuta do vento e a dinâmica da luz. Instala-se, assim, o universo da ressonância essencial, onde todas as coisas repercutem-se mutuamente, manifestando o caminho do Despertar. 
Essa ressonância foi destacada por papa Francisco na sua encíclica Laudato si, sobre o cuidado da casa comum (2015). Por diversas vezes ele sinaliza sua convicção sobre a estreita interligação entre tudo[3]. Como assinala Francisco, é a própria base da existência do ser humano que se desmorona quando ele busca declarar-se autônomo (LS 117). O antropocentrismo revela, na verdade, uma problemática relação do ser humano com o mundo e os outros seres da criação. Uma espiritualidade ecológica, profunda, resgata a dinâmica relacional: “Há um mistério a contemplar em uma folha, em uma vereda, no orvalho, no rosto do pobre” (LS 233).
Uma nova compreensão veio favorecida pela antropologia, e aqui podemos lembrar a presença de Tim Ingold, com suas esclarecedoras reflexões sobre o ser humano, entendido em seu “nexo singular de crescimento criativo dentro de um campo de relacionamentos”[4]. O autor lança o singular desafio de uma atenção nova ao tempo. Todo ser que se move deve estar atento, pois “estar atento significa estar vivo para o mundo”[5]. Nesta obra, Ingold recorda-nos de que cada ser é um “feixe de linhas”. Somos assim lançados como “um redemoinho na corrente da vida”, situados não num “lugar” mas “ao longo de caminhos”[6]. A textura do mundo é marcada por entrelaçamentos, um tecido de nós: “É dentro desse emaranhado de trilhas entrelaçadas, continuamente se emaranhando aqui e se desemaranhando ali, que os seres crescem ou ´emanam` ao longo de suas relações”[7]. Organismos e pessoas formam “nós em um tecido de nós”. E ingold reflete com acerto: “As coisas são suas relações”. Estamos todos envolvidos na textura do mundo da vida, sem privilégios ou excepcionalidades. 
Ingold bebe também na reflexão de  Gilles Deleuze e Félix Guattari, sobretudo o passo reflexivo presente no primeiro volume da obra Mil platôs, quando os autores abordam a instigante questão do rizoma[8]. Vejo aqui uma porta importante de acesso para celebrar o valor do múltiplo, do plural. O Rizoma, dizem nossos autores, é diferente da árvore, que é símbolo muito querido no Ocidente. A árvore e a raiz fixam-se num ponto e indicam a presença de uma ordem. O rizoma não, ele se espalha “como manchas de óleo”[9]. Ele produz bulbo, evolui “por hastes e fluxos subterrâneos”. Em verdade, “as multiplicidades são rizomáticas”. Num rizoma não existem “pontos” ou “posições”, como numa árvore, mas linhas de segmentaridade, que podem até dissolver-se, desterritorializar-se, mas logo encontram seus pontos de fuga. As linhas “não param de se remeter uma às outras”[10]. 
Deleuze e Guattari indicam que no Ocidente há uma relação privilegiada com a floresta, com as árvores (e também o desmatamento). No Oriente, por sua vez, a relação se dá com a estepe e o jardim. Há alí uma resistência ao confinamento em espaços fechados. Daí também a predileção pela imanência. A pista está no rizoma e na erva. Dizem os dois autores, com referência a certos historiadores: “A única saída é a erva (...). A erva existe exclusivamente entre os grandes espaços não cultivados. Ela preenche os vazios. Ela cresce entre, e no meio das outras coisas. A flor é bela, o repolho útil, a papoula enlouquece. Mas a erva é transbordamento”[11]. 
O rizoma quebra o mundo da ordem, produzindo “deformações anárquicas no sistema transcendente das árvores; raízes aéreas e hastes subterrâneas”[12]. 
E os autores definem então as principais características de um rizoma:
“Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços da mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não signos. O rizoma não se deixa conduzir nem ao Uno nem ao múltiplo”[13]. Tudo isto muito complexo mas também provocador. Assim, o rizoma “não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda”[14].
O rizoma é composto de linhas, linhas de segmentaridade, mas também linhas de fuga ou de desterritorialização. O que está aqui em questão, fundamentalmente é a RELAÇÃO. É como um platô, que está sempre no meio, sem início nem fim. O rizoma “não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo”. Enquanto a árvore indica filiação, o rizoma expressa a aliança. O que a árvore impõe é o verbo “ser”, enquanto o rizoma a conjunção “e...e...e...”[15]. 
Questões como “de onde você vem” ou “onde quer chegar” não se colocam para quem pensa inspirado na noção de rizoma. O mesmo se diria da obsessão em se buscar um fundamento ou também a unidade. São questões meio “inúteis” nesta nova linha de reflexão, “implicam uma falsa concepção da viagem e do movimento”.
São questões que abrem um campo fantástico para a reflexão, também teológica, neste tempo marcado pelo desafio da pluralidade.




[1]Clodomir Andrade. Budismo e a filosofia indiana antiga. São Paulo/Juiz de Fora: Fonte Editorial/PPCIR, 2015, p. 64. 
[2]Maître Dôgen. Shôbôgenzô. La vrai loi, trésor de l´oeil. Vannes: Sully, 2005, p. 189 (no capítulo Udonge).
[3]Papa Francisco. Carta encíclica Laudato si(LS) Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015, nºs 16, 42, 91,92.
[4]Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 12.
[5]Ibidem, p. 13.
[6]Ibidem, p. 38.
[7]Ibidem, p. 120.
[8]Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil platôs 1. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª reimpressão em 2017).
[9]Ibidem, p. 23.
[10]Ibidem, p. 25-26.
[11]Ibidem, p. 40.
[12]Ibidem, p. 42.
[13]Ibidem, p. 43.
[14]Ibidem, p. 43.
[15]Ibidem, p. 48.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Uma santidade inserida no tempo

Uma santidade inserida no tempo: a chamada de Francisco

Faustino Teixeira


Hoje, 09 de abril de 2018, veio divulgada a Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate (GE) do papa Francisco. A data do documento é 19 de março, por ocasião da solenidade de São José. Trata-se de uma exortação que abre pistas essenciais para o chamado à santidade. O mote é bem claro, vindo do evangelho de Mateus: “Alegrai-vos e exultai” (Mt 5,12). Uma palavra que vem dirigida “aos que são perseguidos ou humilhados por causa dele” (GE 1). O objetivo vem apresentado logo no início: “O meu objetivo é humilde: fazer ressoar mais uma vez a chamada à santidade, procurando encarná-la no contexto atual, com os seus riscos, desafios e oportunidades, porque o Senhor escolheu cada um de nós ´para ser santo e irrepreensível na sua presença e amor` (Ef 1,4)”. 

Não se trata de um tratado sobre a santidade, mas de um convite, de uma chamada à santidade (GE 2). O documento compõe-se de cinco capítulos: A Chamada à santidade (I); Dois inimigos sutis da santidade (II); À luz do mestre (III); Algumas características da santidade no mundo atual (IV); Luta vigilância e discernimento (V). 

A partir de uma primeira leitura do documento busco aqui sublinhar alguns pontos que me chamaram a atenção neste primeiro momento, o que não significa que esta leitura seja a definitiva nem que exclua outras possibilidades de pontuação. Falo aqui do que me tocou de forma particular. Minha intenção é deixar o texto falar, comentando aqui e ali o que me chamou a atenção.

A Chamada à santidade (I)

            O documento parte da referência à carta aos Hebreus, mencionando as várias testemunhas que nos encorajam no caminho da santidade, como Abraão, Moisés e Sara, entre tantos outros. Estamos, assim, rodeados de uma “nuvem de testemunhas” que nos ajudam a avançar e não nos deter no caminho (GE 3). Os santos estão, na verdade, “ao pé da porta”, e não se reduzem aos santos beatificados ou canonizados. Eles são os testemunhas tocados pelo Espírito, e este “derrama a santidade por toda parte, no santo povo fiel de Deus” (GE 6).

            Os santos estão por todo canto, “no povo paciente de Deus”, entre mulheres e homens simples, aqueles que vivem bem “perto de nós”, como “um reflexo da presença de Deus” (GE 7). São pessoas muitas vezes anônimas: “Certamente, os eventos decisivos da história do mundo foram essencialmente influenciados por almas sobre as quais nada se diz nos livros de história” (GE 8). A santidade é o que há mais singelo na igreja, o seu “rosto mais belo”, mas encontra-se também fora de seu reduto, em áreas diversificadas (GE 9). 

            O papa Francisco nos recorda que pessoa alguma deve desanimar-se diante de modelos de santidade que aparecem como inatingíveis. Isto porque “a vida divina comunica-se ´a uns de uma maneira e a outros de outra`” (GE 11). Isto me faz lembrar Teresa de Ávila, no quinto livro das Moradas, capítulo terceiro, quando busca animar suas irmãzinhas no caminho da santidade, sobretudo àquelas que têm dificuldade de alcançar as mercês sobrenaturais. O caminho que ela indica é o mais cotidiano e vizinho: a prática do amor a Deus e o amor ao próximo. Insiste sobre a importância deste itinerário: guardando com firmeza esses dois mandamentos garante-se a profunda união com Deus (V M 3,7). E complementa Teresa: “E convencei-vos: quanto mais adiantadas estiverdes no amor ao próximo, tanto mais o estareis no amor de Deus” (V M 3,8).

            Na visão de Francisco, para trilhar o caminho da santidade “não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso” pois é um âmbito que se abre para todas as pessoas: “Todos são chamados a ser santos”, e isto nas simples ocupações do dia-a-dia (GE 14). A santidade brota e se irradia nos pequenos gestos, sempre “sob o impulso da graça divina” (GE 18). 

            O horizonte para o buscador deve ser sempre muito claro: o reino de Deus e sua justiça. Firma-se aqui para Francisco um dado que é fundamental: “Não se pode conceber Cristo sem o Reino que Ele veio trazer”. Identificar-se com o Cristo é também comprometer-se com o seu projeto de vida, com o horizonte almejado, de um reino de amor, justiça e paz para todos (GE 25).  Nesse projeto vital, nesta atividade que santifica, são essenciais os momentos de quietude e silêncio diante do Mistério maior. Francisco insiste na importância dos momentos de solidão sonora, em que se detém a corrida febril da vida para “recuperar um espaço pessoal, às vezes doloroso mas sempre fecundo, onde se realize o diálogo sincero com Deus” (GE 29). É o momento onde nos detemos para enfrentar “a verdade de nós mesmos” e nos deixamos “invadir pelo Senhor”. Sem tais momentos de desaceleração a própria missão sai prejudicada, quando então “o compromisso esmorece, o serviço generoso e disponível começa a retrair-se. Isto desnatura a experiência espiritual” (GE 30). Trata-se do “espírito de santidade”, imprescindível para a caminhada nos rastros do Mistério (GE 31). Francisco é bem claro: “Cada cristão, quanto mais se santifica, tanto mais fecundo se torna para o mundo” (GE 33). 

Dois inimigos sutis da santidade (II)

            Nesse capítulo, Francisco chama a atenção para dois riscos presentes no caminho da santidade: o gnosticismo e o pelagianismo. No primeiro caso, a tentação de se fechar no campo subjetivo, “onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam”, mas que na verdade enclausuram a pessoa no âmbito da imanência (GE 36). No segundo caso, a tentação de atribuir centralidade ao esforço pessoal, deixando em segundo plano o mistério da graça. Na verdade, segundo Francisco, com o pelagianismo firma-se uma “vontade sem humildade”, uma perspectiva que não reconhece devidamente “que a nossa realidade é fruto dum dom” (GE 55). Para Francisco, “só a partir do dom de Deus, livremente acolhido e humildemente recebido, é que podemos cooperar com os nossos esforços para nos deixarmos transformar cada vez mais” (GE 56). Aqui situa-se o desafio maior, de deixar-se “pertencer a Deus”. 

À luz do Mestre (III)

            Neste momento, Francisco busca retomar os ditos  de Jesus, como caminho singular para a compreensão e exercício da essência da santidade. Fala no desafio de “voltar às palavras de Jesus”, pois ali se encontra a chave de entendimento da santidade. O caminho está traçado numa resposta simples: fazer cada um “aquilo que Jesus disse no sermão das bem aventuranças” (GE 63). As bem-aventuranças guardam o segredo maior da santidade. O papa discorre sobre cada bem aventurança e assinala a importância da pureza de coração, da mansidão, da misericórdia, da fome e sede da justiça etc. O amor verdadeiro, insiste Francisco, é aquele que brota de um coração puro (GE 85-86). Fala também da virtude do perdão: “Jesus não diz ´felizes os que planejam vingança`, mas chama felizes aqueles que perdoam e o fazem ´setenta vezes sete`(Mt 18,22)” (GE 82). Recorda ainda o valor dos pacíficos, daqueles “que cuidam de semear a paz por todo lado” (GE 88). São eles “fonte de paz”, e não é nada fácil construir a paz evangélica, uma paz “que não exclui ninguém; antes, integra mesmo aqueles que são um pouco estranhos” (GE 89). 

            Viver a santidade é sobretudo “abraçar diariamente o caminho do Evangelho” (GE 94). Isto não é nada fácil! Trata-se de um caminho que num momento ou outro vai deparar-se com as incompreensões e a perseguição. A regra magna para a santidade vem ditada no capítulo 25 do evangelho de Mateus: “Tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, era migrante e me acolhestes, esta nu e me vestistes, estava enfermo e me visitastes, estava encarcerado e fostes ver-me” (MT 25,35-36). A santidade é algo bem terrenal, distante do êxtase que revira os olhos, e bem próxima do gesto que desvela o rosto do outro.

            A santidade firma-se no solo da oração, não há dúvida, mas indica uma oração que alimenta “uma doação diária de amor”. A oração deve frutificar no âmbito da misericórdia: “O melhor modo para discernir se o nosso caminho de oração é autêntico será ver em que medida a nossa vida se vai transformando à luz de misericórdia” (GE 105). A misericórdia torna-se, assim, o “critério para individuar” os que são de fato verdadeiros filhos de Deus.

Algumas características da santidade no mundo atual (IV)

            Neste capítulo, Francisco busca destacar os traços espirituais indispensáveis para o exercício da santidade, ou seja, para “compreender o estilo de vida a que o Senhor nos chama” (GE 110). Dentre as características indicadas sublinha a paciência e a mansidão, o traço da “solidez interior” (GE 112). Sublinha também a importância da humildade. Destaca ainda o traço da alegria e o sentido do humor. Indica que “o santo é capaz de viver com alegria e sentido de humor. Sem perder o realismo, ilumina os outros com um espírito positivo e rico de esperança” (GE 122). Para esta alegria busca inspiração nos profetas e em Maria. Nada impede a dinâmica da alegria, esta força de resiliência que vence os momentos difíceis e encontra o ritmo de luz nas frestas do tempo: “Nada pode destruir a alegria sobrenatural, que se ´adapta e transforma, mas sempre permanece pelo menos como um feixe de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o contrário, sermos infinitamente amados`” (GE 125). Ao lado da alegria, a ousadia e o ardor. A santidade, indica Francisco, “é ousadia, é impulso evangelizador que deixa uma marca no mundo” (GE 129). Seu impulso vem de Jesus: “Olhemos para Jesus! A sua entranha de compaixão não era algo que o ensimesmava, não era uma compaixão paralisadora, tímida ou envergonhada, como sucede muitas vezes conosco. Era exatamente o contrário: era uma compaixão que o impelia fortemente a sair de si mesmo a fim de anunciar, mandar em missão, enviar a curar e libertar” (GE 131). 

            Em sua prática, Jesus se alimentava do Deus sempre maior, do Deus que é novidade, que impele à saída e que nos convoca ao êxodo e ao movimento, a “mover-nos para ir mais além do conhecido, rumo às periferias e aos confins. Leva-nos aonde se encontra a humanidade mais ferida e aonde os seres humanos, sob a aparência da superficialidade e do conformismo, continuam à procura de resposta para a questão do sentido da vida” (GE 135). 

            A experiência da santificação ocorre em comunidade, é o que nos lembra Francisco. É um caminho comunitário, de criação de um espaço teologal que faculte a experiência do Senhor ressuscitado (GE 142). Os buscadores são despertados ao exercício de atenção aos “pequenos detalhes do amor” (GE 144-145), onde vigora o cuidado mútuo e o exercício de discernimento do projeto do Pai. Tudo isto num clima constante de oração: “O santo é uma pessoa com espírito orante, que tem necessidade de comunicar com Deus” (GE 147). Francisco adverte que não pode haver santidade sem oração. Todos buscadores necessitam de um “silêncio repleto de presença adoradora” (GE 149). 

Luta, vigilância e discernimento (V)

            No último capítulo de sua Exortação Apostólica, Francisco fala sobre a “luta permanente” que anima a vida cristã. Trata-se de um projeto que requer força, coragem e resistência diante das amarras do mal (GE 158). O maligno está aí, sempre por perto, com suas maquinações. Há que resistir com vigor contra suas artimanhas. Como antídoto, trilhar com serenidade “o progresso no bem, o amadurecimento espiritual e o crescimento do amor” (GE 163). Requer-se igualmente o exercício contínuo de discernimento, não apenas nos momentos extraordinários, mas também na luta do dia-a-dia. Há que permanecer em estado de atenção ao Senhor, de “obediência ao evangelho”. Este caminho de atenção nos coloca em sintonia fina com a liberdade de espírito, em atitude de escuta do Senhor, dos outros e da realidade (GE 172).

            Sem dúvida, estamos diante de um documento de atualidade inédita, que abre caminhos novidadeiros para a nossa ação profética no tempo, que aponta pistas fundamentais para viver a dinâmica da santidade. Tudo em límpida sintonia com o caminho de coerência de Francisco, cuja nota essencial é dar continuidade ao projeto de vida do evangelho.


            

terça-feira, 3 de abril de 2018

Estar vivo para o mundo

Estar vivo para o mundo: novos caminhos da reflexão

Faustino Teixeira


Na tradição Zen temos a presença singular de Mestre Dogen (1200-1253), que em capítulos importantes de seu Shôbôgenzô faculta uma compreensão nova da dinâmica do caminho ou da Via. Num deles aborda o tema da voz dos vales e as formas-coloridas das montanhas (Keisei sanshoku). Indica que viva relação que vigora entre a voz dos vales e a imensa língua do despertar. Em outro capítulo, que trata das montanhas e rios como sutras (Sansuikyô), sublinha que as montanhas e rios recolhem o campo da presença da Via de antigas experiências do despertar. Aponta para a importância do olhar neste desafio imprescindível de captar o movimento das montanhas. Aqueles que não conseguem VER o movimento das montanhas, a vida das montanhas, não precisamente os que não conseguem captar o próprio movimento de si. E acrescenta: “Quem quer conhecer a marcha de Si deve conhecer precisamente a marcha das montanhas azuis”[1]

No âmbito da recente antropologia vemos autores como Tim Ingold que buscam repensar o animismo dos povos originários, e isto no sentido de reconectar o ser com a vida.[2]Trata-se de um caminho inovador e ousado, que visa reanimar a tradição “ocidental” de pensamento. Com base na ontologia anímica, a vida se desenrola numa superfície animada e em processo. Tudo está em movimento, pois onde há vida há movimento: o sol está vivo, assim como as árvores e o vento[3].Tudo em movimento.

Tudo está em movimento e também em interação. Há uma viva ressonância na dinâmica do vivente. Esse novo caminho busca romper radicalmente com o antropocentrismo e a ideia de excepcionalidade humana que o acompanha. Uma nova compreensão de “nós” emerge, incorporando agora também o “ambiente” que nos circunda[4].A diversidade ganha vida e consistência, assumindo a condição de “valor superior para a vida”. 

Assistimos hoje a uma “virada ontológica” na antropologia, como aponta o sugestivo livro de Eduardo Kohn: Como pensam as florestas (2013)[5].O subtítulo do livro é audacioso: em busca de uma antropologia para além do humano. O autor, que realizou sem trabalho de campo com um grupo runa, em Ávila, na Amazônia equatoriana, está convencido de que os não humanos são também sujeitos de representação, compartilhando com os humanos a “qualidade de agentes”. A seu ver, animais e florestas pensam e representam. Como mostra Kohn, as pessoas em Ávila, que habitam as bordas da floresta amazônica, convivem e interagem na selva com uma miríade de entidades não humanas. Essas “criaturas da floresta” estão envolvidas numa “ecologia de selves”. Os seres humanos não são os únicos egos (selves) no mundo, mas agentes inseridos num campo vasto de outros egos, de outros “nós”. Há uma malha viva de relações das quais participam os Runa, relações vivas. Um processo que indica que a representação é “uma propriedade do mundo” e não apenas da mente humana. 

No âmbito deste novo quadro representacional, de atenção à ecologia dos egos, uma ecologia semiótica, abre-se um novo horizonte para a antropologia, capaz agora de perceber e redescobrir o encantamento do mundo. Tudo se insere neste progressivo “retorno às cosmologias antigas e suas inquietudes”, como sublinharam Bruno Latour e Viveiros de Castro[6]. Exemplo importante disto é o livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu. Segundo Viveiros de Castro, este livro traduz “um acontecimento científico incontestável, que levará alguns anos para ser devidamente assimilado pela comunidade antropológica”[7].

O livro divide-se em três partes: na primeira ("Devir outro") ocorre a descrição da vocação e iniciação xamânica de Davi Kopenawa; na segunda ("A fumaça do metal"), o processo do encontro com os brancos, sobretudo a chegada dos missionários e "a irrupção mortífera dos garimpeiros"; na terceira ("A queda do céu"), toda a jornada empreendida pelo xamã Kopenawa, no Brasil e no mundo, em favor da defesa da causa indígena e da floresta.

Na cosmologia yanomami, como descrita por Kopenawa, a floresta não está morta, mas permeada de vida e da melodia dos espíritos. O que ali ecoa é a voz dos xapiri, numa floresta que é “bela e silenciosa”. Com os olhos dos xapiri, o olhar sobre a floresta vem radicalmente alargado. Relata a respeito Kopenawa:

"Agora sei que nossos ancestrais moraram nesta floresta desde o primeiro tempo e que a deixaram para nós para vivermos nela também. Eles nunca a maltrataram. Suas árvores são belas e sua terra é fértil. O vento e a chuva conservam seu frescor. Nós comemos seus animais, seus peixes, os frutos de suas árvores e seu mel. Bebemos a água de seus rios. Sua umidade faz crescer as bananeiras, a mandioca, a cana-de-açúcar e tudo o que plantamos em nossas roças. Viajamos por ela para comparecer às festas reahu a que somos convidados. Nela fazemos nossas expedições de caça e coleta. Os espíritos nela vivem e circulam por toda parte à nossa volta. Omama criou esta terra e aqui nos deu a existência. Pôs no seu chão as montanhas, para mantê-las no lugar e fez delas as casas dos xapiri, que deixou para que cuidassem de nós. É nossa terra e essas são palavras verdadeiras”[8].



[1]Maître DOGEN. Shôbôgenzô. La vrai Loi, Trésor de l´Oeil. Vannes, Sully, 2005 (Traduction intégrale, Tome 1 – par Yoko Orimo).
[2]Tim INGOLD. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2011.
[3]Ibidem, p. 121-124.
[4]Eduardo VIVEIROS DE CASTRO. Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2007, p. 257.
[5]Eduardo KOHN. How forests think: toward an anthropology beyond the human. Berkeley: University of California Press, 2013.
[6]Bruno LATOUR. Enquête sur les modes d´existence. Une anthropologie des Modernes. Paris: La Decouverte, 2012, p. 452; Eduardo VIVEIROS DE CASTRO. O recado da mata (prefácio). Davi KOPENAWA E Bruce Albert. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 35.
[7]Davi KOPENAWA E Bruce Albert. A queda do céu, p. 15.
[8]Ibidem, p. 331.